Por que a concentração monopólica da mídia é a negação do
pluralismo
O déficit de investimentos setoriais, as políticas públicas
inconsistentes e a inércia regulatória afastaram o Estado do protagonismo nas
áreas de informação, entretenimento e telecomunicações. Em face da concentração
monopólica, a possibilidade de interferência do público nas programações
depende não só da capacidade reativa dos indivíduos, como também de se
garantirem direitos coletivos e controles sociais democráticos sobre a produção
e a circulação de dados, sons e imagens.
Nos últimos meses, vem crescendo a mobilização de dezenas de
entidades da sociedade civil em torno de duas iniciativas convergentes na luta
pela democratização da comunicação no Brasil: a campanha “Para
expressar a liberdade”, que defende uma nova e abrangente lei geral de
comunicações; e o Projeto
de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, cuja finalidade é
regulamentar os artigos da Constituição de 1988 que impedem monopólio ou
oligopólio dos meios de comunicação de massa e estabelecem princípios para a
radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisão).
São propostas fundamentais que têm como pressuposto a
necessidade de se pôr fim à concentração monopólica da mídia.
Por que a concentração favorece as ambições mercantis de grupos
midiáticos, afeta a diversidade informativa e cultural e representa a negação
do pluralismo?
Este artigo propõe-se a lançar luzes sobre a questão, que
tem a ver com a garantia constitucional da liberdade de expressão e com o
aprofundamento dos direitos democráticos no país.
As últimas décadas acentuaram, no Brasil e na América
Latina, o traço histórico de concentração de expressiva parcela dos meios de
comunicação nas mãos de um reduzido número de megagrupos.
A moldura de concentração prospera em meio à digitalização
de sistemas, redes e plataformas de produção, transmissão e recepção de dados,
imagens e sons.
As infotelecomunicações (palavra que utilizo para designar a
convergência tecnológica entre os setores de informática, telecomunicações e
mídia) asseguram as condições objetivas para o crescimento exponencial da
oferta de canais, produtos, serviços e conteúdos.
Só que essa vocação expansiva se consolida sob controle,
influência e lucratividade de poucas corporações, via de regra globais, ou
nacionais e regionais em alianças estratégicas ou parcerias com gigantes
transnacionais.
O ciclo de concentração monopólica está intimamente
associado à diversificação produtiva apoiada em tecnologias de ponta e na
capacidade de inovar em prazos curtíssimos e a custos reduzidos.
Os focos das políticas de comercialização são a diminuição
de custos industriais e enormes ganhos de produtividade com a economia de
escala.
Para preservar poderes monopólicos, as corporações recorrem
a duas manobras principais, segundo David Harvey: “uma ampla centralização do
capital em megaempresas, que busca avidamente o domínio por meio do poder
financeiro, economias de escala e posição de mercado, e dos direitos
monopólicos da propriedade privadas por meio de direitos de patente, leis de
licenciamento e direitos de propriedade intelectual” [1].
Significa concentrar nas mesmas mãos todas as etapas dos
processos tecnoprodutivos, com vistas a garantir liderança na cadeia de
fabricação, processamento, comercialização e distribuição dos produtos.
O lastro financeiro, a capacidade logística, a
infraestrutura tecnológica e o controle de inovações e patentes conferem aos
conglomerados multimídias vantagens competitivas incomparáveis, já que empresas
nacionais de menor porte não têm recursos nem suportes para gerir investimentos
de vulto [2].
Às pequenas e médias firmas restam nichos de mercado ou o
fornecimento de insumos e serviços especializados, sempre que é mais vantajoso
para as grandes companhias terceirizar a produção ou adquirir itens cuja
fabricação seria dispendiosa.
Os monopólios midiáticos são determinantes porque interferem
na conformação do imaginário coletivo e em valores consensualmente aceitos e assimilados.
No Brasil e na América Latina, tanto no âmbito público
quanto na esfera privada, há fatores que contribuem, em graus variados mas não
menos substanciais, para agravar a concentração.
O déficit de investimentos setoriais, as políticas públicas
inconsistentes e a inércia regulatória afastaram o Estado, nos últimos
decênios, do protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e
telecomunicações.
Em contrapartida, grupos transnacionais ocuparam vorazmente
os vácuos abertos, favorecidas por legislações frágeis, anacrônicas e
permissivas, que lhes permitem acumular licenças de rádio e televisão – as
joias da coroa em termos de faturamento e projeção política, ideológica e
cultural.
Esse quadro nos leva a convergir com Néstor García Canclini
quando avalia que a desigualdade na produção, na distribuição e no acesso aos
bens culturais “não se explica como simples imperialismo ou colonialismo
cultural (ainda que subsistam esses comportamentos), e sim pela combinação de
processos expansivos, exercícios de dominação e discriminação, inércias
nacionalistas e políticas culturais incapazes de atuar na nova lógica dos
intercâmbios”. [3]
Com as desregulamentações e privatizações durante os anos
1980 e 1990, os megagrupos alastraram-se sem maiores restrições legais na
América Latina.
Eles adotam uma estratégia centrada em mercados mais seguros
e rentáveis, estabelecendo parâmetros de produção, distribuição, difusão e
circulação de conteúdos que lhes proporcionem crescente rentabilidade.
A estratégia é oportunista porque, constantemente, as majors
abandonam segmentos arriscados em termos de investimentos (cinema e música)
para operar prioritariamente em áreas com retornos mais imediatos (telenovelas,
seriados, jogos eletrônicos) e nos meios de massa que atraem publicidade e
patrocínios (imprensa, rádio, televisão).
Aliam-se ainda a sócios ou parceiros globais e regionais que
lhes ofereçam logísticas sólidas, financiamentos assegurados e inserção
mercadológica.[4]
Em função da recessão econômica pós-2008 na Europa e nos
Estados Unidos, as corporações transnacionais incrementaram a corrida por
lucros compensatórios na América Latina.
A região converteu-se em um dos mercados mais cobiçados para
o escoamento de produtos e serviços.
O vasto potencial de consumo, o espanhol como segundo idioma
da globalização, a carência por tecnologias avançadas e a ausência de
legislações antimonopólio motivaram corporações, sobretudo norte-americanas, a
incrementar os negócios, expandindo marcas, patentes e conteúdos no maior
número possível de praças.
News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann,
Sony e Prisa adquiriram ativos de mídia e/ou sedimentaram acordos com grupos
regionais.
Com isso, ampliaram exponencialmente suas atuações
multissetoriais e os mercados, com as vantagens adicionais de reduzir e
repartir custos e contornar fatores de risco – em especial os decorrentes da
instabilidade econômica e do encolhimento da vida útil das mercadorias.
Para os grupos regionais, tais associações representam a
possibilidade de entrecruzar negócios e estabelecer alianças com atores de
maior peso no cenário internacional.
Os quatro maiores conglomerados de mídia latino-americanos –
Globo do Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; e Clarín da
Argentina –, juntos, retêm 60% do faturamento total dos mercados
latino-americanos.
Para se ter uma ideia dos níveis recordes de concentração,
basta saber que Clarín controla 31% da circulação dos jornais, 40,5% da receita
da TV aberta e 23,2% da TV paga; Globo responde por 16,2% da mídia impressa,
54% da TV aberta e 44% da TV paga; Televisa e TV Azteca formam um duopólio,
acumulando 69% e 31,37% da TV aberta, respectivamente. [5]
No Brasil, é aguda a concentração na televisão aberta.
De acordo com levantamento do projeto Os Donos da Mídia, seis redes
privadas (Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT) dominam o mercado de
televisão no Brasil.
Essas redes privadas controlam, em conjunto, 138 dos 668
veículos existentes (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva.
A Globo, além de metade da audiência, segue com ampla
supremacia na captação de verbas publicitárias e patrocínios. [6]
Cabe salientar ainda que, no Brasil e na América Latina, a
concentração monopólica se estabelece, há décadas, sob a égide de dinastias
familiares proprietárias dos principais grupos midiáticos. Entre tais famílias
estão Marinho, Civita, Frias, Mesquita, Sirotsky, Saad, Abravanel, Sarney,
Magalhães e Collor (Brasil), Cisneros e Zuloaga (Venezuela), Noble, Saguier,
Mitre, Fontevecchia e Vigil (Argentina), Slim e Azcárraga (México), Edwards,
Claro e Mosciatti (Chile), Rivero, Monastérios, Daher, Carrasco, Dueri e Tapia
(Bolívia), Ardila Lulle, Santo Domingo e Santos (Colômbia), Verci e Zuccolillo
(Paraguai), Chamorro e Sacasa (Nicarágua), Arias e González Revilla (Panamá),
Picado Cozza (Costa Rica), Ezerski, Dutriz e Altamirano (El Salvador),
Marroquín (Guatemala) e Canahuati, Roshental, Sikaffy, Willeda Toledo e Ferrari
(Honduras). [7]
Entre os impactos mais graves da concentração, podemos
apontar: as políticas de preços predatórias destinadas a eliminar ou a
restringir severamente a concorrência; os controles oligopólicos sobre
produção, distribuição e difusão dos conteúdos; e a acumulação de parentes e
direitos de propriedade intelectual por cartéis empresariais.
Martín Becerra chama a atenção ainda para o alto risco de
unificação das linhas editoriais e a prevalência das ambições empresariais
sobre os interesses do conjunto da sociedade.
E acrescenta:
“A concentração vincula os negócios
do espetáculo (estrelas exclusivas), dos esportes (aquisição de direitos de
transmissão), da economia em geral (inclusão de entidades financeiras e
bancárias) e da política (políticos transformados em magnatas da mídia ou em
sócios de grupos midiáticos) com áreas informativas, o que gera repercussões
que alteram a pretensa ‘autonomia’ dos meios de comunicação.” [8]
Os impactos negativos da transnacionalização cultural se
refletem na ocupação oligopolizada e na desnacionalização das indústrias de
entretenimento.
Os dois principais mercados editoriais, Brasil e Argentina,
estão majoritariamente nas mãos de grupos estrangeiros.
As majors dominam as cadeias de distribuição e exibição
cinematográficas, com supremacia de lançamentos de filmes estrangeiros.
O mercado fonográfico apresenta desequilíbrios semelhantes.
No Brasil as gravadoras independentes produzem 70% da música
nacional, mas só conseguem 8% de espaço de difusão nas emissoras de rádio e
televisão.
Ao mesmo tempo, as majors gravam apenas 9% com repertório
nacional e, no entanto, ficam com 90% dos espaços de divulgação. [9]
Sem contar que, no âmbito da Organização Mundial do
Comércio, os Estados Unidos tentam sempre impedir protecionismos nas indústrias
audiovisuais (na forma de subsídios e fomentos), para favorecer os negócios de
suas corporações.
Os recursos de distribuição e exibição audiovisuais estão
subordinados às estratégias traçadas pelas majors norte-americanas.
“Conseguem isso com o apoio de políticas protecionistas e os
privilégios impositivos que o governo norte-americano reserva à sua indústria
cinematográfica, bem como através da pressão internacional sobre as demais
nações para que favoreçam a expansão de seu cinema”. [10]
O resultado é que 85,5% das importações audiovisuais da
América Latina provêm dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes,
seriados e eventos esportivos norte-americanos são apresentadas nas emissoras
de TV latino-americanas.[11]
A concentração monopólica da produção simbólica guarda
estreita proximidade com a comercialização em grandes quantidades lucrativas.
As conveniências corporativas se fixam em estratégias de
maximização de lucros e de manutenção da hegemonia mercadológica, sem demonstrar
maior interesse com a formação educacional e cultural das platéias, muito menos
com sentimentos de pertencimento e valores que configuram identidades
nacionais, regionais e locais.
A prevalência das lógicas comerciais manifesta-se no
reduzido mosaico interpretativo dos fatos sociais; na escassa variedade
argumentativa, em razão de enfoques ajustados a diretivas ideológicas das
empresas; na supremacia de gêneros sustentados por altos índices de audiência e
patrocínios (telenovelas, reality shows, esportes); nas baixas influências do
público nas linhas de programação; no desapreço pelos movimentos sociais e
comunitários nas pautas jornalísticas; na incontornável disparidade entre o
volume de enlatados adquiridos nos Estados Unidos e a produção audiovisual nacional.
Em face da concentração monopólica, a possibilidade de
interferência do público (ou de frações dele) nas programações depende não
somente da capacidade reativa dos indivíduos, como também, e sobretudo, de se
garantirem direitos coletivos e controles sociais democráticos sobre a produção
e a circulação de dados, sons e imagens.
À luz do exposto, podemos concluir que se torna insuperável
a exigência de legislações antimonopólicas de comunicação, sobretudo na
radiodifusão sob concessão pública, em função da penetração social e dos
requisitos de interesse coletivo que as empresas concessionárias de canais de
rádio e televisão devem cumprir para desempenhar suas funções de informar,
esclarecer e entreter.
Impossível imaginar uma democratização efetiva da vida
social, com livre circulação de informações e pluralismo, diante do desmedido
poder dos impérios midiáticos.
São urgentes mecanismos legais para coibir a concentração e
a oligopolização, além de permitir lisura e transparência aos mecanismos de
concessão, regulação e fiscalização das licenças de rádio e televisão.
Há exemplos inspiradores na América Latina: as novas leis de
comunicação da Argentina e do Equador, que resultaram de processos
participativos de discussão e elaboração e são reconhecidas por organismos
internacionais como marcos regulatórios avançados.
São essenciais, também, políticas públicas que reorientem
fomentos, financiamentos e patrocínios, de modo a valorizar meios alternativas
de comunicação (como rádios e televisões comunitárias, agências de notícias
independentes, mídias digitais), bem como apoiar a produção audiovisual
nacional e preservar o patrimônio e as tradições culturais.
Políticas debatidas entre segmentos representativos da
sociedade e o poder público, e formuladas com realismo, considerando as
mutações da era digital e seus efeitos nas atividades comunicacionais.
Políticas que protejam a diversidade frente à
transnacionalização simbólica e favoreçam a manifestação de vozes ignoradas ou
excluídas dos canais midiáticos.
Que estimulem a compreensão e a interpretação dos fatos de
maneira plural, avaliando os múltiplos aspectos sociais, econômicos, culturais
e políticos envolvidos.
Iniciativas, enfim, que possam intensificar a diversidade
cultural e fazer prevalecer o direito humano à comunicação como bem comum dos
povos.
* Desenvolvo questões abordadas neste artigo nos meus livros Mídia,
poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação,
em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano (São Paulo, Boitempo/Faperj,
2013), e Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e
democratização da comunicação (Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011).
Notas
[1] David Harvey. “A arte de lucrar: globalização,
monopólio e exploração da cultura”, em Dênis de Moraes (org.), Por uma outra
comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, Rio de Janeiro: Record,
2003 (6a. ed., 2013), p. 148.
[2] Omar López e Sylvia Amaya. Panorama de las industrias
culturales en Latinoamérica. Dimensiones económicas y sociales de las
industrias culturales. Texto apresentado no II Seminario de Economía y Cultura,
Montevidéu, 2004.
[3] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato:
antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 95.
[4] Enríque Bustamante, “Industrias culturales y
cooperación iberoamericana en la era digital”, Pensamiento Iberoamericano,
Madri, n. 4, junho de 2009, p. 79-80.
[5] Martín Becerra e Guillermo Mastrini, Los dueños de
la palabra: acceso, estructura y concentración de los medios en la América
Latina del siglo XXI. Buenos Aires: Prometeo, 2009.
[6] O estudo realizado pelo projeto Os Donos da Mídia
pode ser consultado aqui.
[7] Dênis de Moraes, Vozes abertas da América
Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação, Rio de
Janeiro, Mauad/Faperj, 2011, p. 40.
[8] Martín Becerra, “Mutaciones en la superficie y
cambios estructurales. América Latina en el Parnaso informacional”, em Dênis de
Moraes (org.), Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en
la era digital. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 104.
[9] Beto Almeida. “Por telefone, perigosa
desnacionalização da televisão ameaça soberania brasileira”, Brasil de Fato,
São Paulo, n. 274, 29 de maio-4 de junho de 2008.
[10] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato:
antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 87.
[11] Dênis de Moraes, Cultura mediática y poder
mundial. Buenos Aires: Norma, 2006, p. 46.
Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é
professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da
Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso
Estado da FAPERJ. Foi contemplado em 2010 com o Premio Internacional de Ensayo
Pensar a Contracorriente, concedido pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo
Instituto Cubano del Libro. Autor de mais de 25 livros publicados no Brasil, na
Espanha, na Argentina e em Cuba. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e
contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e
O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Texto originalmente
publicado no Blog da Boitempo, com o qual Dênis colabora mensalmente.
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