Onde está o crime contra a democracia?
Uma mesma notícia que nos faz desabar e desacreditar nas
instituições estabelecidas e em mais um punhado de coisas, pode ter a
capacidade de reafirmar em nós a certeza de que é necessária a luta coletiva
para a garantia plena dos nossos direitos.
Essa mescla de sensações reapareceu na noite deste sábado
(6), quando li, por uma rede social na internet, que o jornalista Cristian Góes
foi condenado criminalmente, com uma pena de sete meses e dezesseis dias de
detenção (revertidos em prestação de serviço em entidade assistencial). O
“crime” cometido por Cristian Góes já é conhecido em Aracaju, em Sergipe, no
Brasil e em todo o mundo (afinal, o caso é tão absurdo que recebeu ampla
divulgação pela organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras):
escrever uma crônica ficcional sobre o coronelismo, sem citar nomes,
personagens, lugares e tempos. O “crime” cometido por Cristian Góes foi, simplesmente,
exercer a sua liberdade de expressão e a sua liberdade e capacidade criativas.
Ainda assim, sem qualquer referência a nomes,
características físicas ou profissionais, o atual vice-presidente do Tribunal
de Justiça de Sergipe, o Desembargador Edson Ulisses, se encontrou no texto, se
viu como “vítima” dos “crimes de injúria e difamação”. Por isso, processou o
jornalista Cristian Góes cível e criminalmente.
Se os processos em si já eram absurdos e demonstravam uma
clara tentativa de cerceamento da liberdade de expressão, a sentença do
processo criminal é mais absurda ainda. É o verdadeiro enterro da liberdade de
expressão em Sergipe. A partir de agora, jornalistas e outros trabalhadores da
palavra dessas terras pensarão dez, vinte vezes antes de expressar a sua
criatividade e a sua criticidade.
E nunca é demais lembrar: a “vítima” do crime é um membro do
Poder Judiciário, ou seja, alguém que lida diariamente com leis. Alguém que tem
como tarefa primeira a defesa dos direitos garantidos legalmente, constitucionalmente,
como é o direito à liberdade de expressão.
Direito que está expresso, por exemplo, no artigo XIX da
Declaração Universal dos Direitos Humanos: “todo ser humano tem direito à
liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de ter
opiniões sem sofrer interferência e de procurar, receber e divulgar informações
e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Direito que está expresso também no artigo 5º, IX, da
Constituição Federal de 1988: “é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença”.
Direito que é rotineiramente afirmado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, para a qual a liberdade de expressão é “uma
pedra angular da própria existência de uma sociedade democrática. É
indispensável para a formação da opinião pública... É, enfim, condição para que
a comunidade, na hora de exercer suas opções, esteja suficientemente informada.
Por último, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada,
não é plenamente livre”.
Dito isso, resta uma pergunta: onde está o crime contra a
democracia? No texto de Cristian ou na decisão judicial?
A Cristian Góes cabe – como o próprio já anunciou pela
internet – recorrer dessa absurda decisão e continuar firme no exercício da sua
cidadania crítica que é comumente manifestada por meio das palavras.
Porém esse processo não tem como réu apenas Cristian Góes,
mas todos (e aqui me incluo) os que defendem a verdadeira liberdade de
expressão e pensamento. Por isso, a nós restam três tarefas: manifestar toda
solidariedade ao jornalista Cristian Góes, denunciar massivamente a decisão da Justiça
sergipana e persistir na luta coletiva pelo desenterro da liberdade de
expressão em Sergipe.
Por Paulo Victor Melo
Jornalista, mestrando em Comunicação e Sociedade na
Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência com jornalismo sindical,
mídias públicas e políticas públicas de comunicação. Coordenador do Intervozes
– Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Fonte: http://www.infonet.com.br
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