A questão do controle
social da mídia, levantada como uma das demandas da 1ª. Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom) tem provocado polêmica e deturpação de seu
significado.
Logo após a
conferência, a grande mídia, que se retirou na última hora dela, fez um
seminário, patrocinado pelo Instituto Milenium e, desde então, rebatiza o
controle social de “censura”, pretendendo a ele se contrapor por defenderem “a
liberdade de expressão”, por vezes apresentada como “direito humano à liberdade
de expressão comercial”
Proibição/inconstitucionalidade
do controle?
Mais recentemente, a
ministra-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), Helena Chagas,
afirmou numa entrevista publicada pela revista Meio e Mensagem que a
Constituição brasileira impõe a regulação da mídia, mas impede qualquer
controle sobre o seu conteúdo.
“A imprensa é livre,
não há controle de conteúdo, a própria Constituição proíbe isso. Mas precisamos
regular os meios de comunicação, até por uma necessidade de acompanhar as
mudanças que o tempo trouxe. (…) ‘Controle social da mídia’ virou uma espécie
de clichê, uma expressão maldita. Tem gente que ouve e sai correndo. Não se
pode ter controle de conteúdo. Isso não existe. Mas temos de regulamentar e
elaborar uma legislação de proteção ao cidadão que se sentir atingido na sua
honra e dignidade por acusações da mídia.”
Com essa declaração,
Helena Chagas sanciona a confusão estabelecida entre “censura” e “controle social
da mídia”, adotando a deturpação do sentido que os grandes meios querem lhe
associar.
Entretanto, a nossa
Constituição nada fala sobre “controle social de conteúdo”. Garante a liberdade
de expressão – que nós também defendemos. De qualquer modo, curiosa com o
caminho encontrado por outros países que têm esse controle estabelecido em lei,
com relação à imagem da mulher nos meios de comunicação, fiz uma pesquisa
tentando entender a fundamentação e a forma que lhes deu origem e consistência.
E descobertas interessantes reforçam a minha crítica à declaração tanto da
Helena Chagas quanto dos grandes meios de comunicação em nosso país.
O estabelecimento do
controle social e da liberdade de expressão
Os 12 países cuja
legislação referente ao controle social da imagem da mulher na mídia foi
analisada em A imagem da mulher na mídia – Controle social comparado – União
Europeia, Estados Unidos, Itália, França, Canadá, Suécia, Inglaterra, Espanha,
México, Peru, Nicarágua, Argentina, Chile – são democracias estabelecidas e em
nada contrariam a liberdade de expressão (ver, neste Observatório, “Exemplos de lá e de cá“ e “Luta e coragem de ser feliz“).
Aliás, todos esses
países reiteram como primeiro item de suas legislações de controle a
determinação de que “é garantida a liberdade de expressão...”. E justificam
esse controle social sobre o conteúdo (ou responsabilidade sobre o conteúdo)
com base em alguns aspectos de sua Constituição – no que diz respeito à
necessidade de se alcançar a efetiva igualdade entre homens e mulheres (como
também reza a nossa Constituição); no respeito aos direitos humanos (“o direito
à liberdade de expressão não pode ser exercido em detrimento dos demais
direitos humanos”) que dizem implementar (assim como nós); e na necessidade de
implementar os acordos internacionais dos quais eles (e nós também) somos
signatários – como as Metas do Milênio (que incluem a igualdade entre os sexos)
, a Convenção de Belém do Pará (contra todas as formas de violência de gênero),
o acordo de Beijing (que se propõe a utilizar e envolver a mídia para conseguir
avançar rumo a igualdade entre os gêneros), entre outros.
Alguns países
justificam o controle social da imagem da mulher na mídia como política
necessária à redução – e, se possível, erradicação – da violência contra a
mulher. E, nossa Lei Maria da Penha, admirada mundialmente por sua amplitude e
precisão, também recomenda o mesmo – ou seja, o envolvimento dos meios de
comunicação neste esforço comum.
A União Europeia
reitera
Recentemente, como
relatado por Venício A. de Lima, a União Europeia mais uma vez reafirmou a
necessidade de implementação de propostas, que não só incluem o controle social
da mídia, como propõem um organismo oficial que exerça esta função, justamente
para garantir a liberdade ampla de expressão e o pluralismo na e da mídia:
(1) a introdução da
educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias;
(2) o monitoramento
permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial ou,
alternativamente, por um centro independente ligado à academia, e a publicação
regular de relatórios que seriam encaminhados ao Parlamento para eventuais
medidas que assegurem a liberdade e o pluralismo;
(...).
Entre outros trechos e
conclusões relevantes, Venício de Lima salienta ainda, do relatório final
produzido, que:
“Pluralismo na mídia é
um conceito que vai muito além da propriedade dos meios. Ele inclui muitos
aspectos, desde, por exemplo, regras relativas a controle de conteúdo no
licenciamento de sistemas de radiodifusão, o estabelecimento de
liberdade editorial, a independência e o status de serviço público de
radiodifusores, a situação profissional de jornalistas, a relação entre a mídia
e os atores políticos etc” (grifos meus).
Finalmente, aponta
também o registro uma proposta específica.
“Após considerações
sobre o reiterado fracasso de agências autorreguladoras, o relatório propõe:
Todos os países da
União Européia deveriam ter conselhos de mídia independentes, cujos
membros tenham origem política e cultural equilibrada, assim como sejam
socialmente diversificados. Esses organismos teriam competência para investigar
reclamações (…), mas também se certificariam de que as organizações
de mídia publicaram seus códigos de conduta e revelaram detalhes sobre
propriedade, declarações de conflito de interesse etc. Os conselhos de
mídia devem ter poderes legais, tais como a imposição de multas, determinar a
publicação de justificativas [apologies] em veículos impressos ou eletrônicos,
e cassação do status jornalístico”(grifos meus) [ver, neste Observatório, “Depois de Leveson, a União Europeia“].
Lembrem-se – estamos
falando da União Europeia, constituída de países e regimes democráticos. Ou
será apenas o Brasil, defensor da democracia e liberdade de expressão?
Parece mais lógico
entender que, como já aconteceu em outros momentos e vozes do governo,
particularmente os ligados à área de comunicação, que a nossa ministra-chefe da
Secretaria de Comunicação Social (Secom) simplesmente produziu mais um discurso
ao gosto dos poucos detentores da nossa grande mídia.
A liberdade de
expressão e os direitos das crianças
Ocorre uma discussão
similar em torno da regulamentação da publicidade infantil, também taxada de
“cerceamento de liberdade da expressão” pelos representantes dos anunciantes e
publicitários, desenhando assim mais uma disputa de significados e de
interesses.
A legislação examinada
no referido livro mostra também que, em função do alcance e impacto social da
propaganda, ela também é objeto de regulamentação e controle nos países
examinados. Mesmo naqueles, como o Canadá, em que há alguns anos se exerce o
autocontrole.
A nossa
autorregulamentação, reduzida ao Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária (Conar), tem servido mais aos interesses da classe que representa
do que da sociedade em geral. Contamos apenas, além dele, com os institutos de
defesa do consumidor (Idec e Procon), além da classificação indicativa para TV.
E até mesmo a simples
“classificação indicativa” (“este programa é recomendado para maiores de 12
anos”) também foi por eles taxada de atentado à liberdade de expressão e
desrespeito à autoridade dos pais. E está em julgamento no STF, tendo sido
condenatórios os quatro votos já proferidos.
Seminário internacional
da ANDI – Comunicação e Direitos, em março de 2013, reiterou a relevância da
proteção social à infância, bem como a importância e delicadeza da
classificação indicativa (que só sugere a adequação do programa à faixa
etária), e recomendou, entre outras medidas, a necessidade de elaboração e
implantação de educação para a leitura critica da mídia nas escolas, como
existe em inúmeros países.
No último seminário do
Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), no dia 15 de maio de 2013, no
auditório do Ministério Público de São Paulo, o procurador de Justiça Vidal
Serrano Nunes Junior, membro do Conselho Diretor do Idec, que participou do
painel “Publicidade e Consumo Infantil”, trouxe um reforço à posição,
argumentando que o Código de Defesa do Consumidor tem quatro diretrizes para a publicidade
comercial, e que configura abuso aproveitar da deficiência de julgamento
da criança.
Comentando também a
reação do setor publicitário às tentativas de regulação da publicidade de
alimentos, com um discurso associado a um suposto cerceamento de liberdades,Serrano
frisou “a publicidade comercial não tem caráter artístico, nem informativo,
razão pela qual não está inserida no âmbito da livre manifestação do
pensamento, e sim na garantia da livre iniciativa. E se trata da exploração de
atividade econômica com objetivo do lucro”.
A mensagem publicitária
não pode conflitar com os direitos fundamentais garantidos na Constituição
Federal, como o direito à saúde e os direitos do consumidor. “O direito de
publicidade não deve onerar essas disposições constitucionais”, declarou
Serrano.
Tal visão é também
compartilhada por Marco Antônio Zanellato (procurador de Justiça e
vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor –
Brasilcon) que ressaltou a necessidade de se regulamentar a publicidade
dirigida a crianças; assim como o procurador Mário Luiz Sarrubbo, ao afirmar
que “somente existe Estado de Direito quando a sociedade exerce seus direitos”.
Mais argumentos,
portanto, que contestam a visão segundo a qual qualquer forma de controle de
conteúdo da mídia, ou da publicidade, representaria um cerceamento à liberdade
de expressão.
Na verdade, estamos
diante da percepção de que o direito incontestável à liberdade de expressão
deve se estender a todos, e não pode ser exercido em detrimento dos demais
direitos humanos.
Afinal, quem controla
quem?
A mídia, ao invés de
constituir um espaço para circular a informação e expressar e dar voz a
múltiplos atores, ao tender à concentração, ao monopólio e ao oligopólio muda a
sua função. E, assim, reduz o pluralismo ideológico e leva a conflitos de
interesses, como afirma Anne Marie Cingras (Mídias e Democracia – o grande
mal-entendido). E então, “mais do que promover a democracia, como um
contraponto a outros poderes e interesses, na verdade os instrumentaliza –
através da formação de valores e modelos, do estímulo ao consumo, da produção e
utilização para fins políticos”.
Com isso, termina
contribuindo para o bom funcionamento do sistema capitalista, fornecendo
consumidores aos anunciantes, preconizando um estilo de vida com base no
consumo e produzindo informação econômica mais centrada no interesse dos
negócios do que na economia social, nas relações de trabalho ou nas
consequências negativas das decisões dos homens de negócio. E desempenha assim
um papel político.
E faz isso porque, como
educadora informal sofisticada, cheia de recursos – de visuais a emocionais – a
mídia é uma poderosa contribuidora para a formação da cultura, dos valores, da
manutenção ou da modificação dos estereótipos e preconceitos – funções que
perfaz com uma maestria, sutileza e sofisticação notáveis. Sanciona modas e
modelos, pinça as novidades a que lhe convém dar visibilidade e as transforma
em objetos do desejo generalizado, enquanto invisibiliza o que não lhe
interessa destacar ou divulgar.
Noticia o que lhe
convém e omite o que não lhe interessa salientar. E, quando não pode ignorar,
noticia os fatos que contrariam os seus interesses já com a análise que deles
deve ser feita pelo ouvinte/leitor/telespectador – sem diversidade, sem
pluralismo, sem fornecer as diversas informações que lhe permitam formar um
ponto de vista autônomo.
A professora, na sala
de aula, reduzida ao quadro-negro, giz, caderno-e-lápis, alfabetiza mais
lentamente do que os comerciais, com todo o seu poder de sedução, que
introduzem os recém-catequizados no mundo do consumo. E assim as crianças
aprendem a ler antes “Omo lava mais branco” do que “mamãe me ama”.
Os fabricantes gastam
grandes somas em publicidade e visibilidade não só nos pontos de venda, como na
mídia. Sabem que esse investimento lhes trará um retorno vantajoso. Se não, não
precisariam desse desembolso. O “ambiente” se adapta ao cenário dos
anunciantes, e a programação e noticiários preenchem a sua função de formadores
de opinião e disseminadores de valores.
Com isso, uma pergunta
não quer calar: isso tudo, afinal, não é controle? Não estaríamos diante do
controle das pulsões, dos desejos, da estética dominante e dos valores dos que
são atingidos pela mídia?
Diante desse imenso
controle que eles exercem sobre o imaginário da população e sobre a cultura,
não seria o controle de conteúdo que pleiteamos um simples contracontrole
social, que visa defender a população desse poder incomensuravelmente maior,
que a seduz?
Será, assim, o nome do
que pretendemos, mais palatável?
Por Rachel Moreno
jornalista integrante da Articulação Nacional Mulher e Mídia, autora de A
Imagem da Mulher na Mídia – Controle Social Comparado (com a colaboração de
Tereza Verardo), para o Observatório da Imprensa.
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